As lendas do futebol existem e eu posso provar
Aos 23 anos, Angelina já jogou com Formiga e está no Mundial que marcará a despedida de Marta e Megan Rapinoe.
*Entrevista produzida em parceria com a Nike
Tudo no futebol aconteceu muito cedo pra mim. Eu entrei na primeira escolinha com 6 anos. Aos 21, eu estava nos Estados Unidos jogando ao lado da Megan Rapinoe. Foi difícil acreditar quando recebi a proposta para jogar no mesmo clube da estrela do último Mundial. Agora, imagina naquele mesmo ano defender a seleção ao lado da lendária Formiga nos últimos Jogos dela? De última hora, eu fui convocada para os Jogos de Tóquio e vivi esse momento!
Com 22 anos, as pessoas brincavam que eu era a substituta da Formiga na renovação da seleção e eu era titular do meio-campo do Brasil a um jogo do título da Copa América de 2022. Até que, aos 6 minutos da final, eu trombei com uma colombiana no campo e caí com muita dor no joelho. Ali começava o maior desafio da minha carreira. Depois de duas cirurgias e 11 meses de recuperação, nem dá para acreditar que estou com a seleção na Austrália para o que deve ser o último Mundial da Marta, a ídola de toda menina que joga bola.
Mas a minha história no futebol começou por causa do meu irmão do meio, que é três anos mais velho do que eu. Tudo que ele fazia, eu queria fazer também. Foi assim que entrei na escolinha de futebol do meu colégio. Meu irmão acabou saindo depois, só que eu peguei paixão pelo esporte. Ainda bem novinha, fui jogar em outra escolinha, chamada Toque do Futuro, em Jacarepaguá, perto de onde eu morava com minha família no Rio de Janeiro.
Todos na escolinha me tratavam muito bem, inclusive os meninos que jogavam comigo. Mas nas competições o pessoal que jogava contra ficava irritado e não queria que eu jogasse. Adivinha o motivo? Porque eu era a única menina e jogava bem contra eles. Mas foram anos maravilhosos lá, até que o meu treinador viu que o Vasco tinha aberto a categoria sub-17 feminina. Foram uns três dias de teste e consegui passar, mesmo tendo só 12 anos. A categoria mais próxima que tinha era a sub-17.
A partir daí, os treinos ficaram mais frequentes e a rotina mais apertada. Minha família se mudou para o Recreio e o meu dia começava cedo, com escola de manhã. Depois, eu almoçava no carro durante o trajeto até São Januário, onde eu treinava a tarde toda no Vasco. Depois do treino, tinha que enfrentar o pico de trânsito na volta e chegava em casa só às 9 horas da noite. E meu pai sempre do meu lado, me levando e buscando dos treinos. Eu sempre tive esse suporte e acabei me adaptando. Todas as vezes que tive dúvida ou quis desistir do futebol, meu pai me disse para eu continuar seguindo o meu sonho.
Quando eu estava perto de completar 16 anos, o nosso time do Vasco começou a disputar jogos contra clubes de São Paulo e do Sul. Foi quando eu comecei a refletir que tinham outros clubes e meninas que eram realmente muito boas e comecei a ver jogadoras de seleção que, até então, eu não tinha contato nenhum, porque eu só jogava os campeonatos do Rio de Janeiro mesmo. Foi quando me perguntei se era isso mesmo que eu queria fazer na vida. Porque eu percebi que o nível era alto. Mas eu sabia a resposta: eu tinha que quebrar o gelo e ir pra cima.
E logo recebi minha primeira convocação para as categorias de base da seleção brasileira. Isso ajudou muito na minha autoestima e me mostrou que eu poderia chegar longe. Aos 17 anos, eu fui para o Santos, onde assinei o meu primeiro contrato profissional. Foi um passo grande pra mim. Naquela época, era muito difícil, até mesmo para as próprias atletas, saber quem jogava nos clubes e quais clubes tinham time feminino. Eu, óbvio, sabia do Santos, por conta do histórico com Marta e Cristiane.
Nas três temporadas que joguei pelo Santos, fomos campeãs do Campeonato Brasileiro (2017), do Paulistão (2018) e vice-campeãs da Libertadores. Eu cresci bastante nesses anos de 2017 a 2019 e criei conexões com o clube e a cidade que vão além do futebol. Em 2020, eu fui para o Palmeiras procurando mais um desafio. Mas acabou vindo a pandemia e infelizmente não joguei muito. No fim daquela temporada, surgiu uma proposta inacreditável de boa para eu ir jogar nos Estados Unidos, justamente o país onde eu nasci, apesar de não ter quase lembranças de lá.
Meu pai se mudou muito novo para tentar a vida nos Estados Unidos, depois ele se casou com a minha mãe no Brasil e acabou voltando para lá. Por isso, eu e meu irmão nascemos em Nova Jersey. Por questões familiares, tivemos que voltar para o Brasil quando eu tinha uns 5 anos de idade. Há pouco tempo, um dos meus irmãos me levou para passear no bairro onde moramos e achei incrível ter lembrado da casa e um pouco da rua onde passei meus primeiros anos de vida. Mas foi só, eu era muito pequena.
Agora, eu voltava para os Estados Unidos aos 21 anos para, assim como o meu pai, tentar a vida em outro país. Mas a vida que eu escolhi foi no futebol. E o melhor de tudo é que foi para jogar no OL Reign. Caramba, é o time da Megan Rapinoe! Ela foi eleita a melhor jogadora do mundo em 2019 depois de fazer um Mundial incrível. Ela já ganhou título mundial e olímpico e ainda é uma figura emblemática no esporte mundial na luta por igualdade de gênero. Junto da ansiedade de viver esse novo desafio, eu me perguntava: "será que a Rapinoe é essa líder também fora de campo?"
Sim, a Rapinoe é exatamente o que aparece para todo mundo. Ela é uma líder e fala mesmo o que pensa e o que precisa. Ela sempre busca o melhor do time e é bem extrovertida e traz essa energia positiva, tanto no vestiário quanto no campo. Além de tudo, ela é uma pessoa incrível, fora de série mesmo. Eu já tinha a Rapinoe como referência, pelo que ela faz dentro de campo, mas depois que a conheci melhor, meu carinho só aumentou.
Eu fico pensando que a Rapinoe ganhou tantas coisas na vida e, mesmo assim, continua sendo aquela pessoa humilde e alegre que sempre está fazendo os outros sorrirem e que me ensina bastante. Ela traz essa experiência para todo o time. A vinda pros Estados Unidos tem sido uma experiência de ampliar minha visão de mundo, seja no contexto do futebol ou em aspectos culturais e pessoais. Foi uma escolha importante na minha vida.
Eis que eu estava tendo um dia normal de treino, quando peguei o meu celular e tinha um monte de mensagens me dizendo que eu tinha sido convocada para a seleção brasileira. Como assim? Eu já tinha terminado o ciclo com a seleção sub-20 há um ano e nunca mais tinha sido chamada para a seleção. Pois é, depois das categorias de base a concorrência salta em nível exponencial. Então eu tinha chegado na seleção principal?
Caramba, eu nem tinha lembrado que tinha convocação para a seleção naquele dia! Mas também eu nem tava tendo contato com ela. Olhei novamente as mensagens. Era verdade, o meu nome estava na lista de convocadas da técnica Pia Sundhage. Quando caiu a ficha, eu abracei uma das melhores amigas e comecei a chorar com as meninas, enquanto todo mundo me dava parabéns. Essa primeira convocação foi tão incrível quanto inesperada!
Eu tava com 21 anos e essa primeira oportunidade de mostrar meu trabalho para a Pia foi nos dois amistosos que o Brasil jogou em junho de 2021, contra a Rússia e o Canadá, na Espanha. Eram os últimos antes da convocação oficial para os Jogos. Eu fui com a cabeça focada em aproveitar cada momento, porque eu sabia que o grupo já estava fechado para os Jogos de Tóquio. E fiz isso. Consegui jogar muito bem nessa convocação e saí de lá com a sensação de que eu tinha dado o meu melhor.
No fim dessa experiência, a comissão técnica da seleção teve uma conversa comigo e explicou que o grupo estava fechado para os Jogos. Depois disso, eu voltei à minha rotina com o clube nos Estados Unidos e até esqueci do dia que seria a convocação oficial da seleção brasileira para os Jogos de Tóquio. Lembro que eu estava com o time em Houston indo para o treino no ônibus quando atendi o celular e era a Pia. Sim, a técnica da seleção tinha ligado pra mim! Será que era sonho?
Sem acreditar direito no que estava acontecendo, eu ouvi a Pia dizer do outro lado da linha: "Infelizmente uma atleta nossa se lesionou e precisamos convocar outra. Você está disponível para disputar os Jogos?" Naquele momento eu comecei a chorar muito dentro do ônibus e as meninas me perguntavam o que estava acontecendo. Elas não estavam entendendo nada, até porque à essa altura eu mal conseguia falar e quando falava era em português.
Nossa, eu tinha acabado de chegar na seleção principal e, agora, eu disputaria os Jogos?
Depois que voltei dessa viagem a Houston com o time, fui direto me integrar à seleção, porque já estava muito perto de embarcar para Tóquio e a delegação já estava treinando em Portland, a duas horas e meia de onde eu moro nos Estados Unidos.
Os Jogos de Tóquio marcaram uma mudança de chave na minha vida. Era aquele momento em que eu finalmente saí das categorias de base e pensei: "Chegou o momento, realmente ele estava acontecendo".
Por causa da pandemia, a nossa rotina no Japão foi só hotel, treino e jogo. Mas a experiência continuou sendo incrível para mim. Eu, tão nova, estava nos Jogos, vivendo todo aquela atmosfera que envolve um evento esportivo dessa dimensão, enfrentando seleções fortes e jogando ao lado da Formiga! Por ser da minha posição, tenho ela como aquela referência de pegada de marcação, de roubar bola e dar o passe certo. Ela sempre foi uma referência para mim e, agora, eu estava jogando com ela!
Quando eu nasci, em 2000, a Formiga disputou os Jogos em Sydney. Depois de 21 anos, ela continuava na seleção e eu pude acompanhar lá de dentro a despedida dela, a única jogadora de futebol do mundo a ter disputado sete Jogos, todas desde que o futebol feminino foi inserido no programa olímpico. Ainda tinha a Marta, que dispensa comentários. O mais incrível é que depois que se conhece a Marta mais de perto, passa a admirá-la ainda mais. É uma pessoa incrível e tem uma energia boa demais.
Era o meu sonho de criança realizado. Não tem como evitar o nervosismo de jogar ao lado dessas referências. Conforme fomos jogando juntas, esse estranhamento foi passando. A admiração, claro, fica. Foi um momento de aproveitar o privilégio de poder estar ao lado delas. A inteligência delas em campo é fora de série, fora a experiência que trazem pra gente. A verdade é que fica muito mais fácil jogar com elas.
Depois dos Jogos, eu consegui conquistar cada vez mais espaço na seleção.
Em julho de 2022, faltando um ano para o Mundial, eu tinha conquistado a confiança da Pia e estava assumindo um papel de destaque no meio campo da seleção. Eu vinha jogando muito bem a Copa América e me consolidei como titular absoluta ao longo da competição. Eu realmente estava jogando mais solta e fui muito confiante para a final. Mas aquele jogo durou só 6 minutos pra mim. Depois de uma trombada na adversária, eu senti uma dor muito forte no meu joelho direito e não consegui mais dobrar a perna.
Depois eu receberia a notícia de que eu tinha rompido totalmente o LCA (ligamento cruzado anterior) e tido uma lesão no menisco. Passei por uma cirurgia para reconstrução do ligamento.Nos primeiros meses, eu ainda tive que passar por uma segunda artroscopia para ganhar um pouco mais de movimento, porque estava meio travado. Foram 11 meses afastada das competições.
Foi um ano bem difícil. Parece até clichê, mas cada fase da recuperação foi exatamente como me falaram. Só que é difícil entender como as coisas funcionam e o quanto esse processo é doloroso e exige mentalmente até passar na pele por isso. Eu tentei fazer o meu melhor para estar bem fisicamente, com grande apoio do clube. Eu também lidei como um período de aprendizado. Comecei a apreciar mais e ser mais grata por poder voltar a jogar.
No fim da minha recuperação eu estava bastante focada em voltar a jogar pelo meu clube. Eu fui liberada pelos médicos e cheguei a ser relacionada para um jogo, mas acabei não entrando em campo. Para a minha surpresa, a Pia convocou um período de treinamento na Granja Comary antes da convocação final para o Mundial. Eu nem sabia que a seleção faria esse tipo de trabalho, mas recebi essa oportunidade como se fosse a minha primeira de novo.
O meu nome não foi falado pela Pia entre as meias convocadas para o Mundial. Mas restava uma esperança. Depois de anunciar as 23 jogadoras inscritas na competição, eu apareci entre as três suplentes. Poxa, não tenho nem palavras para descrever estar vivendo um momento como esse junto da seleção brasileira na preparação para o Mundial depois de passar por um período tão difícil. É mais um sonho realizado.
Ainda mais se tratando desse Mundial, com toda a repercussão que está tendo. Às vezes me perguntam se esse crescimento não pode atrapalhar as jogadoras, ainda mais as jovens, por aumentar a pressão. Eu faço parte de uma geração que chegou nesse ciclo da seleção principal depois de ter disputado campeonatos internacionais na formação, como Sul-Americanos e Mundial sub-17 e sub-20. Nós já temos uma noção do que é uma competição desse tamanho. Claro que é outra dimensão jogar na seleção principal, com atletas que são nossas referências, mas temos bem mais condições de lidar melhor com esses desafios.
E estamos vivendo um momento muito especial, com mais visibilidade, que nem sentimos tanto as críticas. Temos aproveitado que estão realmente falando do Mundial feminino, nos chamando para fazer entrevistas, em que as emissoras de TV estão anunciando a competição e que vemos várias pessoas falando que vão assistir aos jogos. As coisas estão acontecendo. Acho que as meninas nem estão pensando nas críticas. É uma coisa nova e tão boa, que estamos felizes demais e ansiosas para jogar.
Seja dentro ou fora do campo, eu estarei com a seleção neste Mundial que certamente será histórica.
Assim como em 2021, quando convivi com a Formiga nos últimos Jogos dela, agora, não vejo a hora de ver a Marta, pelo Brasil, e a Rapinoe, pelos Estados Unidos, encerrarem duas trajetórias lendárias neste Mundial. Duas jogadoras e dois países que também fazem parte da minha história. Quanto privilégio para quem ainda está só no começo.
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